Quanto mais leio o poema Dois Poetas na praia do Ferreira Gullar, mais penetro num verdadeiro cipoal em que perguntas levam à perguntas.
— Por que um poeta escreve sobre dois poetas?
— Quem são esses dois poetas?
— Ele mesmo, mais velho, e mais alguém? Uma mulher?
— Um casal que está com ele?
— E o que enxergam sobre a areia os dois poetas, na manhã se sol, no carnaval, no Leme, enquanto a terra treme?
— Quem enxerga quem?
— Quem enxerga o quê?
Certa vez assisti a uma palestra do Gullar numa grande e barulhenta feira de livros. Impressionante o seu carisma. Criava em torno de si uma atmosfera de silêncio enquanto a legião de fãs ouvia suas reflexões sobre o que é a poesia, para que serve a poesia. Lá estava eu com meu caderninho anotando tudo.
“Quando escrevo um poema, crio uma situação sem saída”.
“A poesia é uma maneira de apreender a realidade descobrindo a relação linguagem-objeto”.
“A emoção me deixa desequilibrado, cria um curto circuito, que precisa ser preenchido por alguma coisa”.
“O poema tem raiz e caule”.
“Com a poesia eu travo uma luta corporal, rejeito o vício e as formas prontas”.
“Quero que o poema tenha ligação com as pessoas”.
“A poesia é o resultado de um outro tipo de consciência”.
Inspirada elas sugestões de mestre, resolvi entrar no cipoal e continuar o diálogo que os dois poetas iniciaram.
Dois poetas na praia
É carnaval,
a terra treme:
um casal de poetas conversa
na praia do Leme!
– E lerão o meu poema?
pergunta ela.
– Alguém vai ler.
– Pois mesmo que não leia
não vou deixar de dizer
o que vejo nesta areia
que eles pisam sem ver. (FG)
Minha intromissão no diálogo ficou mais ou menos assim:
– E o que os seus olhos veem poeta?
– O caranguejo apressado
As muitas marcas dos pés
A água salgada infiltrando na areia
A casca da tangerina (*)
– E o que mais os seus olhos veem poeta?
– O colorido dos confetes
A flor branca no vai e vem da onda
A espiral da serpentina
A tiara de miçangas
Afinal, é Carnaval!
E o poeta mais velho
sorri confortado:
a poesia está ali
renascida a seu lado. (FG)
Ferreira Gullar, In Em alguma parte alguma, 2010, Editora Olympio
(*) O Cheiro da Tangerina é o nome de um dos meus poemas preferidos de Ferreira Gullar.