Naquele final de tarde, aprontei o jantar mais cedo. Deixei as panelas no fogão cobertas com o pano de prato, onde lia-se a frase – Amor é de mãe. Feijão e arroz, carne de panela cheirosa com fatias sobrepostas de cebola, pimentão e tomates. A salada de alface na pia.
Avisei: hoje vou ouvir Adélia Prado, uma palestra no centro cultural da Prefeitura, a quinze minutos de casa. Precisava. Coloquei vestido florido, perfume atrás da orelha, na bolsa um caderninho pautado, caneta e minha segunda edição do seu livro Bagagem. Era junho de 1983.
Com o coração disparado, engatei uma a uma as marchas no carro vermelho. O que tinha ela a me dizer?
A sala estava quase lotada quando cheguei, piso de madeira, lousa, luz neon, cadeiras em semicírculo, burburinho. Enfim Adélia entra, se acomoda a nossa frente.
Eu tomo fôlego, vasculho a bolsa, abro o caderno, caneta em punho, pronta para anotar o que posso. Não basta ouvir.
Ela começa nos perguntando:
– O que á a poesia?
– Pergunta difícil!
Alguém gritou lá do fundo da sala.
As risadas quebraram o gelo.
– Poesia é o espírito santo. Ele nos induz pela emoção, nos comove porque mexe com nossos afetos e não com nossos pensamentos. Vejam bem, não falo de boniteza. A poesia dá o estatuto à obra de arte, seja música, escultura, pintura, teatro, dança, cinema e literatura. A arte se justifica pela poesia que ela contém. A arte consola, conforta, é pão espiritual.
– Mas e as palavras? Alguém perguntou.
– Não entendo as palavras. Para mim é a coisa mais angustiante que existe. E escrevo de modo fácil, não sofro pra escrever. Fico espantada com esse fenômeno. Por exemplo, a palavra que não é substantivo me põe doidinha. Porque substantivo é substância, carro, pedra, maçã. Mas quando falo “que”, “de”, “esse”, não entendo, me escapa. Quando você começa a estudar a palavra, a sintaxe, você esbarra é na filosofia.
Enquanto tentava anotar, queria também levantar os olhos para não perder suas expressões, atenta ao tom de voz, as modulações da fala.
Adélia devia estar com 50 anos. Uma bela mulher de Divinópolis, MG, vestido preto, cabelos grisalhos quando ainda não era comum entre as mulheres da sua idade. Hoje, em 2022, depois da pandemia, grande parte das mulheres se rendeu aos cabelos brancos e grisalhos.
– Ainda estou descobrindo se tenho deixado o cabelo branco por modéstia ou por excesso de vaidade.
A integridade da sua fala me impressionava. Adélia subvertia o lugar do feminino, sacralizava os ofícios da mulher – lavar, passar, cozinhar, criar os filhos– e me mostrava a potência desse novo lugar.
No final da conversa, durante o momento das perguntas, eu, tímida levantei a mão:
– Adélia, como você encontra tempo para escrever?
– Escrevo entre um afazer e outro. Costumo espalhar papeis pela cozinha, pela sala, no quintal. Qualquer coisa é a casa da poesia, ela pousa onde lhe apraz. Mas, preciso estar presente e registrar. Depois de escrever, se soltar, é bom tirar os excessos. A palavra poética é enxuta, concisa, não suporta enfeite.
Aquele encontro deve ter durado umas duas horas que eu nem vi passar. Havia uma atmosfera de entusiasmo quando levantamos para sair da sala. Algumas pessoas foram até a escritora para ainda conversar, pedir autógrafo, mas eu preferi vir embora.
Antes de voltar para casa, perambulei com meu carro vermelho pela cidade. Liguei o rádio, aumentei o volume para cantar junto com a banda The Police – Every Breath You Take. Devo ter chorado, desconcertada.
Quando cheguei na ponta dos pés, tudo estava quieto, a louça lavada descansava no escorredor. Eu, repleta de incômodos, as emoções em alvoroço, custei a dormir.
A partir dali me autorizei a anotar os meus assombros, medos, júbilos, paixões e a tentar fazer da matéria vida, a matéria das palavras. Palavra carne, palavra corpo.
Trago comigo até hoje o caderninho com as anotações. É uma espécie de talismã olhar as letras miúdas, espalhadas pela folha com caneta esferográfica azul. Leio, releio, certa de que entendi o que nunca vou entender. Certa de que me aproximei de algo que eu não sabia que sabia. A chave dos mistérios. O fazer poético.
Cristina Mira